Eu estava na recepção de um condomínio em Natal quando passou uma senhora. Ela deu bom dia, viu minha filha e, quando já estava bem distante, voltou.
— Moça, vi sua bebê e lembrei... O que são esses bebês Reborn?
Eu já parei de estranhar essas coisas acontecerem — de uma completa desconhecida não trocar nem três palavras comigo e vir perguntar coisas da vida. Ela nem sabe que eu sou jornalista. Se soubesse, teria perguntado mais.
Tentei ser bem explicativa na resposta: é um bebê que parece muito com um bebê de verdade.
— Ele fala?
Não fala. Mas alguns se mexem.
— Mas você concorda com isso?
Se qualquer escritor ou cineasta estivesse construindo um diálogo desses, pareceria surreal. Com o que exatamente eu deveria concordar? Com o fato de bebês Reborn existirem? De fábricas os produzirem? Das pessoas comprarem? Intertexto da análise do discurso: pessoas levarem para uma consulta médica como se fossem bebês de verdade? Adultos (homem, né?!) baterem em crianças de verdade achando que são bonecas? Pessoas baterem em bonecas de desconhecidos e descobrirem que são bebês reais?
Expliquei então que eles são usados, muitas vezes, por mães que perderam seus filhos e estão lidando com o luto. Ou por mulheres e homens que estão esperando um bebê. Tem seu viés terapêutico (também).
Então ela disse que não concordava (?).
Porque estariam, por exemplo, tirando a vaga de alguém no SUS (olha o interdiscurso aí). Fui explicar que nenhum médico, no sistema público ou privado, tem obrigação de atender seres inanimados. Se existe até objeção de consciência — onde um médico pode se recusar a realizar qualquer procedimento que não coloque em risco a vida ou saúde dos pacientes por motivos religiosos — por que um profissional da saúde não poderia se recusar a atender um bebê Reborn? Aí estaria o fim da questão.
Então ela me vem com: "Tá tirando o afeto que poderia ser de outras crianças..." E saiu falando sozinha, ou apenas pensando alto. Que ela não saiba o que a sociedade pensa sobre adoção...
Mas o que eu realmente queria responder quando ela me perguntou se eu sou contra ou se concordo: eu realmente não ligo! Não me importo se uma pessoa — geralmente, dizem, mulher — decide voltar a brincar de boneca. Eu brinco com minha filha e amo. Tanto por ela quanto pela brincadeira. Estou pouco me lixando. E não faz sentido para mim "concordar" ou não com essas bonecas irem a consultas médicas. Teve um médico italiano que fez uma tomografia num gato, dentro de um hospital público. Que ele responda por isso e fim. Tal como o Léo Lins (aqui vai um spoiler do próximo texto).
Há cinco mil anos, bonecas eram colocadas nos túmulos com as crianças. Ushabti eram colocadas nos sarcófagos dos faraós e nobres para "servi-los" no submundo. Não preciso dizer se concordo ou não com isso.
Mulher adulta pode brincar de boneca e nem ser sempre algo relacionado à vontade de maternar do subconsciente explicado pela psicanálise. E pode brincar de outras coisas também. No mesmo dia em que ouvi a pergunta sobre os bebês Reborn, estive em uma feira geek com muita gente fantasiada de desenho animado. Algumas pessoas colecionam bonecos. Tudo isso é bem naturalizado na cultura em que a gente estpá inserido. Inclusive já encontrei o Homem-Aranha várias vezes na Avenida Rio Branco, em Mossoró.
"Ah, mas tem mulher que tá querendo assento preferencial porque está com bebê Reborn." Sim. E tem homem que assalta vestido de Homem-Aranha e a culpa não é do amigão da vizinhança. Tem gente batendo em bebê porque achou que era boneca (o que já é problemático por si só — a ideia de “bater em boneca dos outros no meio da rua”). Uma mulher pode fingir estar grávida para usar assento preferencial ou passar na frente em uma fila de supermercado. Não acredito que o problema esteja nas bonecas — e sim nas pessoas.
E quando o fato deixa de ser individual (de falha na moral e no caráter) e passa a ser coletivo? Quando vira social. Mas me diga você: quantas mulheres adultas com uma boneca Reborn você conhece? Você conhece alguém que conhece alguém adulto que brinca de boneca e anda pelo shopping? Qual a proporção disso? O fato é que as redes sociais podem dar a impressão de que fatos isolados são em massa, porque são divulgados massivamente. E, ironicamente, dão a impressão de que fatos sociais são individuais ou naturalizados (desumanizados), já que vemos tantos casos de violência, por exemplo.
Aí me volta o argumento da senhora sobre "retirar afeto de crianças que existem" ou "ter crianças que precisam de adoção". A seguir, vem uma grande revelação: tem mulher que não quer ser mãe. Ponto. O texto poderia terminar aqui, mas a sociedade não está preparada para isso — e eu preciso elaborar.
Tem tanta criança abandonada por aí sim, e também tem muita “mãe de pet”. Mulheres (e homens também) que não querem ter filhos, mas que adotam animais — e às vezes cuidam como se fossem filhos: cama, comida, festa de aniversário, creche. Antes de você pensar se concorda com uma mulher exercer sua liberdade de comprar uma boneca e brincar com ela porque deveria adotar, revise se você tem o mesmo pensamento sobre quem cria animais (gasta horrores com eles) e poderia estar criando uma criança que está na rua ou em um orfanato.
Sei bem o que as pessoas no geral pensam sobre adoção quando eu falo que não quero engravidar mais e sim adotar - Não é só o olhar que diz tudo, elas mesmas verbalizam.
O fato é que eu não tenho que opinar sobre a vida dessas pessoas. Não quer ter filho? Está no direito. Quer criar gato, cachorro, periquito, papagaio, quer gastar com eles? Está no direito. Melhor não querer ter filho e adotar bicho ou boneca do que não querer, ter ou adotar uma criança por simples pressão social — e não querer/saber cuidar. Nem todo mundo tem disposição para a maternidade ou paternidade.
Então deixem a porra das "mães de bonecas" em paz. Não use a desculpa de estar preocupado com a saúde mental dessas mulheres — porque seu ódio contra elas não ajuda muito nisso. Que procurem terapia — você e elas — se precisarem. Afinal, todo mundo precisa.
Que tal a gente parar de inventar motivo pra julgar mulher? Mas parece que a sociedade diz: “Vamos tirar motivo do c* para fazer uma mulher mais infeliz hoje”.
Tem mais camadas. Poderia falar do lucro crescente que essas empresas de bonecas realistas vêm apresentando nos últimos anos. A quem serve todo esse boom de bebês reborn. Sobre como o capitalismo lucra com hobbies voltados para mulheres — crochê, costura ou livros de pintar como bobbie goods (o livro mais vendido de 2025 - 1, 2, 4 e 6 lugar) e canetinhas. Inclusive chamar tutores de animais de “pais de pet” também serve a uma cultura capitalista que quer humanizar os animais domésticos para lucrar em cima disso. Foi o marketing, meus amores. Não foi o coração dos gatinhos pretos fofinhos (claro que eles ajudaram a vender a publi). A prova disso? Dia das Mães para mães de pet. O capitalismo é sorrateiro. E a gente gosta de fazer parte, não é mesmo?
P.S.: Próximo texto é sobre piada ruim e eu só não surfo no hype porque perco o timing dos assuntos do momento.